Vivemos em uma época marcada por grandes transformações: expansão urbana, monoculturas, pecuária, mineração e intercâmbio de espécies. Essas são algumas das principais atividades que acentuam o processo de desequilíbrio ambiental. Enquanto paisagistas, temos a oportunidade e a responsabilidade de propor formas mais sustentáveis de transformar a paisagem.
A vertente do paisagismo denominada Naturalista traz conceitos ecológicos fundamentais para pensarmos jardins adaptados para cada contexto, celebrando as melhores qualidades de cada bioma. Para isso, é necessário entender o local que estamos inseridos. Nesse texto, vamos falar especificamente do Cerrado, mas a mesma lógica pode ser aplicada para qualquer bioma.
O Cerrado é a segunda maior formação natural da América do Sul e ocupa ¼ do território brasileiro, possuindo 5% de todas as espécies do planeta, 40% das quais existem apenas nesse bioma. Ele é uma savana, e apesar de não ter árvores gigantes, as raízes das plantas nativas são muito profundas. Para sobreviver às longas secas, elas buscam água nos aquíferos subterrâneos. Quando chove, as raízes devolvem a água para os aquíferos, o que garante água para milhares de nascentes durante todo o ano. Por isso, este bioma é considerado a caixa d´água do Brasil, fornecendo 40% de toda a água doce do país e irrigando oito das doze principais bacias hidrográficas.
Infelizmente, a expansão rural já é responsável pelo desmatamento de 40% da área original de Cerrado. Quando ele é desmatado, não tem capacidade de se regenerar sozinho. Algumas plantas até rebrotam, mas a biodiversidade original não volta a ser a mesma. Além disso, as lavouras costumam “corrigir” o solo ácido do Cerrado. Uma vez que o solo perde as características originais, é ainda mais difícil que as plantas nativas voltem a ocupar essas áreas.
Sem as plantas nativas, o Cerrado inicia um ciclo de autodestruição. Quando chove, a infiltração da água no solo não acontece com a mesma eficiência, o que causa erosões à medida que a água ganha velocidade ao escorrer pela superfície. Essa região de “terra lavada” fica pobre em nutrientes e impermeável, o que dificulta o nascimento de novas plantas. Dependendo do relevo, esse processo continua até encontrar um corpo d´água, o que gera assoreamento.
Nas cidades o problema é muito parecido. A expansão urbana brasileira, de modo geral, não dá soluções para as águas pluviais. Investe-se muito dinheiro em infraestrutura de drenagem, mas os alagamentos seguem recorrentes devido à falta de áreas permeáveis nos territórios urbanos e podem ter efeitos catastróficos. Assim, a água, que é um recurso riquíssimo e essencial à vida, tornou-se um problema. Por isso, é necessário mudar o olhar que temos sobre ela, passando a valorizá-la enquanto o recurso inigualável que é.
Por conseguinte, é importante que os projetos paisagísticos se preocupem com a infiltração das águas pluviais. Há muitas opções de infraestrutura verde para potencializar este interesse: jardins de chuva, valas de infiltração, canteiros drenantes, descompactação do solo, mulching, etc. Associar essas técnicas para resolver a drenagem em ambientes urbanos deve ser premissa de um projeto sustentável.
Apesar de algumas áreas urbanas terem áreas verdes disponíveis, como parques e gramados, é falacioso argumentar que isso é suficiente para mitigar os efeitos da impermeabilização e desmatamento em larga escala. Afinal, a crise hídrica já começou e só tende a piorar. Normalmente, as áreas verdes nas cidades são compostas exclusivamente por plantas de outros biomas - que vão precisar de adubo, irrigação e podas frequentes, e que não são resistentes à seca, adaptadas ao solo ou possuem capacidade de infiltrar água até o subterrâneo.
Enquanto profissionais temos a oportunidade de propor algo diferente deste cenário. Já sabemos que é importante utilizar plantas nativas e favorecer a infiltração da água em todo lugar que for possível, desde que a água não esteja contaminada. Agora precisamos ajudar a difundir essa ideia, ajudando o mercado a inverter sua lógica.
Do ponto de vista da preservação do meio-ambiente, os jardins com plantas nativas trazem diversas vantagens. O Cerrado tem milhares de espécies de plantas, a combinação delas pode resultar em jardins com flores ao longo de todo o ano, com grande potencial de floração inclusive durante a seca. A grande diversidade de espécies vegetais, utilizadas normalmente nos jardins naturalistas, ajuda a atrair diferentes insetos e a criar um solo com grande diversidade de microrganismos. Essas características fazem com que os jardins sejam mais resilientes e equilibrados.
Utilizando principalmente a flora rasteira (capins e gramíneas), os jardins naturalistas de Cerrado buscam valorizar o bioma através de apelo estético para contemplação, para assim despertar o interesse para a sua preservação. Aproximando o Cerrado da população espera-se que cada vez mais pessoas entendam a importância do bioma, apreciem sua beleza ainda pouco conhecida e ajudem a reverter o sério problema ambiental que vivemos. Conhecemos tão pouco sobre o Cerrado, e se o desmatamento continuar nos ritmos atuais, é provável que o paisagismo urbano se transforme em uma forma de conservação.
Por fim, vale esperançar que em larga escala uma mudança de paradigma pode trazer diversos benefícios tanto para a qualidade do espaço urbano quanto para o meio-ambiente, a sociedade e a economia local. Os jardins naturalistas exigem mais conhecimento técnico, mas por ter a ecologia como premissa são mais sustentáveis. Eles são resistentes à seca, não sendo necessário gastar água e dinheiro com irrigação após o jardim se estabelecer. As plantas são adaptadas ao solo, muitas vezes ácido e pobre em nutrientes. Se plantarmos para o futuro, podemos ser referência em uma nova forma de se pensar as áreas verdes nos ambientes urbanos.
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Mais informações sobre jardins e sementes do Cerrado:
O projeto paisagístico das casas Morrone e Vila Rica foram realizados por Mariana Siqueira, que cedeu gentilmente suas fotografias.